“O Homem Que Virou Suco”, de João Batista de Andrade
(Brasil, 1981)

 

 

Trabalho e Estranhamento

 


“A desgraça é desse mundo
A fome é de Severino
Um homem que sofreu tanto
Pra uns poucos ficar sorrindo
Um vivendo do bom viver
Mil morrendo desde menino”

(Folheto de Cordel - 1974
Autoria: João Batista de Andrade)

 

Introdução

O cinema, como um meio de interação, deixa de ser um entretenimento, para se tornar uma ferramenta de linguagem que visa a expressão crítica e a denúncia social. No Brasil, por volta dos anos 1960, o contexto político inspirou o cinema em sua transformação crítica da realidade política e social, adotando uma postura engajada politicamente, que através de mensagens transmitidas nos filmes era expresso o desejo de transformação. Dessa forma, o cinema torna-se fonte de influência ideológica e produção de sentidos, tomando uma posição militante, reflexiva, com a função de conscientização e denúncia. Através de elementos cotidianos e já naturalizados, imersos na rotina da sociedade, o cinema crítico utiliza fatos aparentemente banais ou comuns, vidas inexpressivas em meio a uma sociedade industrializada e capitalista, que desprezadas enquanto classes, são esquecidas enquanto seres humanos.

A trama centralizada em aspectos cotidianos possibilita, desta forma, discutir a situação política, social, econômica ou levantar questões como a identidade nacional, relações de poder, precarização do trabalho e sua reestruturação. É o que se pode chamar de uma “realidade produzida”, cujos elementos reais são mostrados enfaticamente dentre um contexto de subordinação e submissão.

O presente artigo se propõe a analisar o filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, a partir de uma concepção sociológica, com destaque nas relações de trabalho, entre outros elementos envolvidos nessas relações. Para tal desenvolvimento, serão utilizados conceitos de Marx para melhor esclarecimento do objeto, trazendo a teoria para a atualidade e utilizando o filme como base ilustrativa e temática. Conceitos tais como a relação capital-trabalho enquanto contradição dialética, com ênfase no trabalho estranhado como criador dessa contradição e ao mesmo tempo conseqüência de tal e por ultimo, a alienação.

Trabalharemos de um modo geral com o conceito de trabalho, que para Marx é a utilização da força de trabalho. Antes do trabalhador colocar em ação essa força de trabalho (vendendo-a), ele apenas a tem em potencial. O homem através do trabalho faz um intercambio com a natureza, impulsionando e regulando com sua ação o intercambio estabelecido, colocando em prática as forças naturais de seu corpo, submetendo-as a seu domínio. Dessa forma, o homem diferencia seu trabalho do trabalho animal, pois se utiliza de métodos racionais para chegar a seu objetivo, ele idealiza o resultado a que quer chegar, projetando-o em sua mente, assim, transmitindo sua atenção à prática.

É possível a aplicabilidade do conceito para a compreensão das transformações a que sofreu o trabalho ao longo do curso histórico e a repercussão que isto alcançou, em uma relação trabalho/capital, e como isto afeta as relações humanas, a subjetividade dos indivíduos e a cultura. Através do diálogo entre o filme analisado e a teoria marxiana, o artigo tem como intuito demonstrar como tais relações são expressas no filme de forma eloquente, através da representação de um personagem que não consegue se adequar a nenhuma forma de trabalho a ele imposta, expressando a partir desta trama o estranhamento a que sofrem muitos trabalhadores para com a sociedade, o trabalho e com sua própria vida. A partir disto, compreender o trabalho dentro do sistema capitalista como forma de apropriação de identidade, subjetividade e dominação.

O filme

A trama se volta a Deraldo, um nordestino que se aventura à cidade grande, mais especificamente São Paulo, em busca de uma forma melhor de vida. Deraldo, ao contrário da maioria dos emigrantes, não se submete rapidamente aos trabalhos oferecidos para homens sem qualificação ou especialização, trabalhos precarizados que visam mão de obra barata e sem a possibilidade de reivindicação.

Deraldo se esforça ao máximo para conseguir se estabelecer através da produção de suas poesias e literatura de Cordel, que é sua maior habilidade. Logo no início do filme, seu trabalho de poeta é ridicularizado por moradores de seu bairro, em vários diálogos são demonstradas concepções comuns do que significa trabalho, sendo utilizadas expressões como “trabalhar é pegar no batente” ou “emprego digno é acordar seis horas da manhã”, essas frases podem ser analisadas como uma falsa concepção de dignidade, camuflando uma exploração inerente ao “trabalho digno”, quando a o que se chama de “trabalhador honesto” é um individuo imerso na lógica exploradora, esta compreensão, na qual se tornou um censo comum, esta naturalizada de forma alienada em relação ao conceito trabalho.

“MARIA:
Isso é diversão, seu Deraldo. Se o senhor fosse cego,
vá lá, mas com uns olhinhos desses tão vivos...
Porque não faz igual a meu marido,
que pega no batente desde 6 horas da manhã
e só volta à noite?”

(Batista de Andrade, João- "O homem que virou suco", p. 62)

Em uma cena mais adiante, ainda no início do filme, é demonstrado como um trabalho informal e independente como escrever poemas e vendê-los nas ruas, é desprezado e principalmente, impedido. Deraldo, ao tentar vender suas poesias nas ruas, é abordado de forma extremamente grosseira por policiais que o impedem de vender seus cadernos de poesia, o trabalho de poeta não é visto como um emprego digno e legítimo, sendo considerado “coisa de vagabundo”. Sua origem nordestina é também um fator que colabora para a dificuldade encontrada pelo personagem em se impor e se manter na cidade.

Porém, esta cena tem como elemento principal a ser analisado a utilização da burocracia como forma de opressão e exclusão social. Os policiais o indagam sobre sua formalidade burocrática em relação ao comércio de rua, e se possui uma permissão que demonstra a legalidade do seu trabalho, Deraldo não possui nenhum documento, inclusive seus próprios que comprovariam sua identidade, logo, é considerado um indigente, não poderia ser um cidadão, e isso já o denomina como um excluído desde o início do filme. A questão da identidade também pode ser algo observado nesta cena, e em diversas outras, é um aspecto também abordado de forma enfática no filme. O fato do personagem ser um emigrante nordestino contribui de forma catastrófica para intensificar todas as dificuldades já encontradas por um indivíduo de uma classe inferior.

No decorrer do filme, Deraldo abre mão de sua verdadeira habilidade de poeta para ir em busca do que chamavam de “um trabalho de verdade”. Todos os empregos na qual Deraldo tem alguma possibilidade são de extrema precariedade, exploração e submissão, assim como uma obra de construção civil, construção de metrô, empregado doméstico. É explícita a frustração do personagem em relação ao sucesso almejado na grande metrópole, e isso é demonstrado também em outros personagens, quando em meio a uma conversa com companheiros de trabalho da construção civil, Deraldo lê as cartas de seus colegas, uma vez que é o único alfabetizado.

Nesta cena, é possível observar a desilusão por parte dos emigrantes que foram até as grandes cidades em busca de condições melhores. A cena se compõe de vários homens juntos ouvindo a leitura da carta, cujas palavras são todas de esperança por parte dos parentes que ficaram. Na carta, a namorada de um deles diz que seus irmãos e outros parentes têm muitos planos para se mudarem para São Paulo, a fim de encontrarem empregos bons. Pode-se observar a grande ilusão que existe em relação a grandes centros urbanos, principalmente no Estado de São Paulo, que devido a seu desenvolvimento atrai pessoas de outros estados, porém, sem a consciência de que este desenvolvimento só se mantém sobre a exploração de mão de obra barata.

O personagem tem sua vivência fortemente marcada pelo trabalho, em suas varias tentativas de se incorporar a sociedade através deste, de forma frustrada. A trajetória de Deraldo tem como paralelo a vida de Severino, outro personagem também nordestino, cuja semelhança entre ambos é extrema, e são confundidos frequentemente. A vida de Deraldo é um reflexo da vida de Severino, porém, com a diferença de que Severino se submeteu e se entregou ao sistema.

Deraldo passa por um estranhamento evidente no decorrer o filme, a partir do conceito de Marx. O personagem permanece alheio a seu trabalho, não há sentido na relação entre sua vida e o processo de trabalho a que se vê submetido por necessidade, sendo obrigado a desprezar sua essência humana e suas potencialidades. Deraldo, constata que não trabalha para si, e sim para algo maior, para uma grande indústria que o exclui, embora o incorpore.

Este estranhamento entre o trabalhador e a mercadoria a que ele mesmo produziu causa uma eterna insatisfação pessoal e profissional, é uma grande contradição, pois o individuo jamais terá acesso a seu produto, devido a seu grande custo em contradição a seu pouco salário. Isto é devidamente ilustrado na cena em que Deraldo está trabalhando em uma obra civil, e revoltado com a postura esnobe dos visitantes da obra e futuros compradores desta (e de seu trabalho) se sente ofendido por ser destratado pelo mestre de obras, se comporta de forma zombadora e engraçada.

É a esta dinâmica incoerente que Deraldo não consegue aceitar, e por isso é considerado um “revoltado” que não se adequa a nenhum emprego. Esta inadequação é ilustrada em todos os empregos que Deraldo tenta se incorporar, pois se recusa a receber ordens na qual considera abusivas, ou que tenha regras impositivas, pois não concorda com o sistema padronizado a que são obrigados a se formalizar.

Deraldo tenta se incorporar em um trabalho mais coletivo, para ver se dessa forma consegue passar despercebido, vai até uma obra de metrô que esta contratando funcionários em massa. Este momento do filme transmite a idéia da proximidade a animais a que operários são inferiorizados, em filas que remetem a gados. Ainda na mesma parte, é transmitido aos operários um filme, que se é passado por três dias antes de iniciar as atividades, e é para os funcionários saberem como devem se comportar. O audiovisual, como chama o “professor”, ridiculariza os mitos nordestinos, a cultura e os costumes, transmitindo a mensagem de que não há espaço para isto na grande cidade industrializada e mercantilizada.

Este momento, pode-se perceber a anulação da identidade, sua expropriação e imposição de um comportamento padrão. Deraldo tenta resistir a isto a todo momento, e por negar a se submeter, é excluído socialmente e denominado como louco ou indigente. Exausto de se prejudicar fisicamente e psicologicamente por um salário insuficiente, Deraldo se rende as exigências burocráticas e volta a ser poeta pelas ruas de São Paulo.

Conclusão

O filme parte do pressuposto da centralidade do trabalho na sociedade. Porém, por sua vez, expressa as transformações e representações a que vêm sofrendo o trabalho ao longo do curso da história e mais especificamente pelo sistema capitalista, tanto em sua atuação social quanto em seu sentido subjetivo na vida dos indivíduos. É mostrado no enredo como o sistema capitalista pode desenvolver o extremo da complexidade de fenômenos como o estranhamento e a alienação, em uma trama na qual o personagem, em uma eterna busca pela sua integração ao mercado de trabalho, não consegue se encaixar em um ambiente estranho e hostil a ele.

A trama se faz em volta às diversas formas e sentidos a que o personagem têm contato com o trabalho, em uma representação da vida de inúmeros brasileiros que vão em busca da ilusão do desenvolvimento de grandes centros urbanos. O cinema é um meio que possibilita essa diversidade de representações de forma realista e artística.

Bibliografia

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 5ª ed., R. Janeiro : Zahar Editores, 1970
_______. O Capital. Vol. I, tomo 1, São Paulo : Abril Cultural, 1983ª
_______. Trabalho alienado e superação positiva da auto-alienação humana. (Manuscritos econômicos e filosóficos). In: FERNANDES, Florestan (org.). K. Marx, F. Engels – História. São Paulo: Ática, 1983.

 

Manuela Lowenthal Ferreira é graduanda em ciências sociais na UNESP-Campus de Marília